Inviabioidade jurídica da modulação de efeitos em matéria tributária

Como é elementarmente sabido a instituição de tributo só pode ocorrer por via de lei em sentido estrito (art. 150, I da CF).

Sabemos, também, que a Constituição não cria tributos, somente outorga competência para as entidades políticas contempladas. É a discriminação de rendas tributárias, um dos grandes princípios limitadores do poder de tributar.

A lei que institui o tributo, necessariamente, deve descrever o fato gerador da respectiva obrigação. Em relação a impostos a definição do fato gerador está sob reserva de lei complementar de aplicação no âmbito nacional (art. 146, III, a da CF), abarcando o seu aspecto nuclear, objetivo ou material (norma jurídica genérica e abstrata definindo a hipótese em que é devido o imposto); o aspecto subjetivo (a Fazenda Pública, de um lado, e o contribuinte ou o responsável tributário, de outro lado); o aspecto quantitativo (base de cálculo e alíquota); o aspecto espacial que indica o local de ocorrência do fato gerador que define o sujeito ativo do tributo; e o aspecto temporal que define a legislação tributária aplicável em cada caso concreto.

A alteração de qualquer um desses elementos implica alteração do imposto instituído em lei, implicando sua inconstitucionalidade quer pela identidade com outro imposto, incidindo na bitributação jurídica, quer por representar um imposto novo, não previsto na Carta Magna.

A Corte Maior, como guardiã da Constituição, pronuncia a inconstitucionalidade da lei tributária sempre que houver violação de princípios constitucionais tributários, e também, por via reflexa, quando houver modificação de um dos aspectos do fato gerador definido em lei complementar em se tratando da espécie imposto.

Quando o STF pronuncia a inconstitucionalidade de um tributo no bojo de uma ADI, passados longos anos em razão da não apreciação da Medida Cautelar, preferindo conhecer diretamente o mérito da ação, é comum a Corte Suprema proceder a modulação de efeitos para não causar impacto orçamentário repentino. Isso contraria a natureza declaratória da decisão de inconstitucionalidade proferida que tem como consequência lógica o efeito ex tunc. A decisão judicial simplesmente reconhece que o preceito legal atingido era inconstitucional desde o nascedouro.

O efeito prospectivo em matéria tributária ofende escancaradamente o princípio da legalidade tributária que fundamenta a ação de repetição de indébito. Consoante escrevemos:

Finalmente, outra questão não lembrada pelos estudiosos, é a que diz respeito à repetição de indébito. Para nós, o verdadeiro fundamento da repetição de indébito não repousa na parêmia de Pompônio, o princípio do locupletamento ilícito indevido, mas, no princípio da estrita legalidade que impõe a reposição do solvens no statu quo ante sempre que constatado o pagamento sem fundamento na lei. Com esse posicionamento resolvem-se as dificuldades hoje enfrentadas nesse campo [1].

Outrossim, o efeito prospectivo acaba estimulando a ação de governantes astutos que passam a valer-se de instrumentos normativos viciados para arrecadar o máximo que puder, contando com a costumeira morosidade do Judiciário. Quanto mais demorar a tramitação do processo judicial impugnando determinado tributo, maior a arrecadação do tributo inconstitucional. Isso aconteceu com a exacerbação da base de cálculo do ICMS na operação de substituição tributária para frente, valendo-se do primeiro posicionamento da Corte Maior pela desnecessidade de restituição caso fique constatado na operação subsequente que o fato gerador presumido ocorreu em extensão menor [2] até que houve reversão da tese em sentido contrário, mas com modulação de efeito, ou seja, quem pagou a maior fica sem direito à repetição, quem eventualmente deixou de pagar, não precisa mais se preocupar com adimplemento da obrigação tributária [3].

Em outras palavras, o efeito prospectivo conferido em matéria tributária implica passar uma esponja sobre a cobrança tributária levada a efeito à margem do princípio da legalidade tributária, colocando em risco a segurança jurídica que decorre do Sistema Tributário Nacional esculpido na Constituição. É evidente que tal situação, além de injusta ofende o princípio de isonomia tributária.

A modulação de efeitos em matéria tributária só é possível na hipótese inversa, isto é, quando o contribuinte deixa de recolher determinado tributo em decorrência da inconstitucionalidade declarada pela Corte Suprema de forma reiterada, e que repentinamente muda de entendimento, apanhando de surpresa os contribuintes que vinham agindo na esteira da jurisprudência pacífica vigente.

É o que aconteceu, por exemplo, com o FUNRURAL em que a Corte maior decretou a sua inconstitucionalidade no bojo do RE nº 363852/MG, DJ 23-4-2010.  A referida inconstitucionalidade foi reiterada em sede de Repercussão Geral nos autos do RE nº 596.177/RS, DJe de 29-8-2011. Passados mais de 7 anos aquela Alta Corte de Justiça do País alterou radicalmente o seu posicionamento jurisprudencial sem que houvesse alteração substancial da legislação do FUNRURAL considerando-o constitucional, apanhando de surpresa os contribuintes que de boa-fé vinham se abstendo de pagar a referida contribuição social condenada pelos tribunais do País seguindo a orientação do STF.

O Executivo,  para prestigiar o princípio da boa-fé e o princípio de proteção da confiança que incumbe ao Estado proteger, instituiu o Programa de Regularização Rural – PRR – por meio da Medida Provisória nº 793/18 com a alteração introduzida pela MP nº 803/17, convertida na Lei nº 13.603 de 9 de janeiro de 2018, possibilitando o pagamento do débito do FUNRURAL por meio de 176 prestações mensais e sucessivas, com a redução de 100% de juros moratórios.

Era o caso de modular os efeitos da decisão, a fim de dispensar a exigência das contribuições não pagas na vigência da jurisprudência que era favorável ao contribuinte, apesar de a figura da modulação não ter previsão para os casos de declaração de constitucionalidade. Entretanto, o efeito prospectivo, no caso, encontraria apoio no princípio da razoabilidade que se coloca como um limite à ação do próprio legislador, além dos já citados princípios da boa-fé e da proteção da confiança que estão implícitos no art. 1º da Constituição que proclama o Estado Democrático de Direito, que assegura a todos a necessária segurança jurídica.

Finalizando, modular os efeitos em matéria tributária mediante utilização de argumentos que nada têm de jurídico para preservar, por exemplo, o equilíbrio orçamentário da entidade política transgressora da ordem legal [4], fere de morte o princípio universal da legalidade tributária que tem origem no advento da Carta Magna de 1215 na Inglaterra.

Hoje, esse princípio está incorporado em todos os Estados Democráticos. Como guardião da Constituição Federal não pode o STF conferir efeito prospectivo na decisão proferida em matéria tributária de forma a afrontar o princípio constitucional da legalidade tributária e o princípio da segurança jurídica em que se assentam os princípios da boa-fé e da proteção de confiança. Quem de boa-fé confia na lei vigente e na jurisprudência em vigor da mais Alta Corte de Justiça do País não pode ser prejudicado com o advento das alteração jurisprudencial posterior. Como dito anteriormente, o efeito prospectivo somente cabe para dar guarida a princípios constitucionais expressos e implícitos na Constituição, que por meio de princípios limitadores do poder de tributar funcionam como escudo de proteção do contribuinte. Nunca para buscar efeito contrário.


[1] Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 27. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p.390.

[2] RE nº 266.523, DJ 17-11-2000 e ADI nº 1.851, DJ 13-12-2002.

[3] RE nº 593.849, DJe 5-4-2017.

[4] A experiência tem demonstrado que há uma correlação entre o aumento da arrecadação tributária e a expansão dos déficits primário e nominal. Quanto mais se arrecada, maior o desperdício de verbas públicas conduzindo ao desequilíbrio maior do orçamento público.

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Sócio da Harada Advogados Associados. Professor de Direito Administrativo Financeiro e Tributário. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, da Academia Brasileira de Direito Tributário e da Academia Paulista de Direito. Membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Fiesp e do Conselho Superior de Direito da Fecomércio. Autor de 26 obras jurídicas.
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