ICMS sobre TUSD e TUST nas operações para consumidores cativos.

A não-inclusão da TUSD e TUST na base de cálculo da incidência do ICMS sobre a energia elétrica
Paulo Caliendo

Wikimedia Commons

O complexo, arcaico e ineficiente sistema tributário nacional não se furta em trazer novas dúvidas. Está em dúvida, a não tão recente, mas não por isso menos relevante, incidência do ICMS sobre a TUSD e a TUST. Não irei resgatar o amplo e significativo debate sobre o tema, em homenagem aos que já escreveram e aos que estudam o tema[1].

Escrevo sinteticamente algumas linhas sobre argumentos para defender a não-inclusão da TUSD e TUST na base de cálculo da incidência do ICMS sobre a energia elétrica, nos casos de contratos cativos de fornecimento[2].

O presente texto trata de rebater a tese fiscal da incidência do ICMS sobre o conjunto do valor da operação, assim considerado o preço da energia elétrica e os custos de transmissão e distribuição. Assim, no entender do julgado do REsp 1163020-RS “a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.163.020/RS, passou a se orientar no sentido de que a tributação do ICMS abrange todo o processo de fornecimento de energia elétrica, tendo em vista a indissociabilidade das fases de geração, transmissão e distribuição, razão pela qual a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição – TUSD – compõe a base de cálculo de referido tributo”.

Cremos que esse entendimento viola a exigência de respeito ao princípio da tipicidade da tributação, o que no caso demanda exigibilidade tão somente sobre a circulação de mercadorias. Vejamos, sinteticamente, os principais elementos dessa conclusão.

  1. Hipótese de Incidência: circulação de mercadoria

O ICMS somente incide sobre a transferência efetiva de mercadorias. O mesmo se aplica a transferência e consumo efetivo de energia elétrica (Súmula n. 391 do STJ, sobre a demanda efetiva de potência de energia elétrica).

  1. Preço da Mercadoria e Preço do Fornecimento da Mercadoria

Necessário diferenciar-se o fornecimento de energia elétrica e o preço da energia elétrica. A fatura de energia elétrica, conforme a ANEEL[3], reflete o preço do fornecimento de energia elétrica e não o preço desta em si. Vejamos o que diz a Cartilha da ANEEL sobre o assunto:

O transporte da energia (da geradora à unidade consumidora) é um monopólio natural, pois a competição nesse segmento não geraria ganhos econômicos. Por essa razão, a ANEEL atua para que as tarifas sejam compostas por custos eficientes, que efetivamente se relacionem com os serviços prestados.

Os encargos setoriais e os tributos, detalhados nas próximas páginas desta cartilha, não são criados pela ANEEL e, sim, instituídos por leis. Alguns incidem somente sobre o custo da distribuição, enquanto outros estão embutidos nos custos de geração e de transmissão.

Quando a conta chega ao consumidor, ele paga pela compra da energia (custos do gerador), pela transmissão (custos da transmissora) e pela distribuição (serviços prestados pela distribuidora), além de encargos setoriais e tributos. Atualmente, numa conta de R$ 100, a compra de energia corresponde a R$ 31,00, enquanto a transmissão custa R$ 5,70 e a distribuição, R$ 26,50. Os encargos respondem, em média, por R$ 10,90 e os impostos e tributos (ICMS, PIS e Cofins) respondem por R$ 25,90.

Veja-se que o consumidor paga pela mercadoria (energia elétrica), pelos serviços de transmissão e distribuição, como unidades autônomas, mas faturadas no preço final ao consumidor. Veja-se que não estamos tratando do custo da mercadoria em si, mas de serviços autônomos, monopolizados, com repercussão econômica, mas sem repasse jurídico integrado ao preço da mercadoria.

  1. Da possível analogia com o frete de mercadorias.

Poder-se-ia alegar que se incluía na base de cálculo do ICMS a remuneração pelo serviço de transporte da mercadoria (frete), assim se incluiria igualmente os custos de transmissão e distribuição, da mesma forma.

Inicialmente cabe observar que o frete somente se inclui na base de cálculo do ICMS por estrita previsão legal. Determina a Lei Complementar 87/1996 que:

Art. 13. A base de cálculo do imposto é:

(…)

§ 1º Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo:

(…)

b) frete, caso o transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado.

Note-se que a norma somente autorizou a inclusão do frete na base de cálculo no caso transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado, ou seja, em contratos CIF. Vedou-se a inclusão do Frete FOB (Free on board) na base de cálculo nesse caso.

No caso de operações com ST, determinou a LC 87/96 que:

Art. 8º A base de cálculo, para fins de substituição tributária, será:

(…)

II – em relação às operações ou prestações subseqüentes, obtida pelo somatório das parcelas seguintes:

a) o valor da operação ou prestação própria realizada pelo substituto tributário ou pelo substituído intermediário;

Nesses casos se incluiu na base de cálculo tanto os contratos de frete CIF, quanto FOB.

Conforme apresentado pela legislação acima, independente se o frete é CIF ou FOB, ele integra a base de cálculo do ICMS-ST, mas tão somente quando existem operações ou prestações subsequentes. No caso contrário é vedada, por falta de previsão legal, a inclusão do frete FOB na base de cálculo do ICMS-ST quando destinado a consumidor final.

Assim podemos afirmar que o princípio da legalidade desautoriza o entendimento analógico ou extensivo da TUST e TUSD como forma de transporte assemelhado ao frete e do regime aplicável aos fretes. Se ainda assim fosse possível, não seria viável a sua inclusão por falta de autorização legal.

  1. Preço da Praticado na Operação Final

Considerando que não são custos da mercadoria, que não há autorização da cobrança da transmissão e distribuição como espécies de “fretes”, vejamos o que a lei determina sobre a composição da base de cálculo do preço energia elétrica. Determina o art. 9o., §. 1o., inc. II da Lei Complementar 87/96 que:

II – às empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, nas operações internas e interestaduais, na condição de contribuinte ou de substituto tributário, pelo pagamento do imposto, desde a produção ou importação até a última operação, sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na operação final, assegurado seu recolhimento ao Estado onde deva ocorrer essa operação.

Note-se que a regra não determina a incidência sobre o valor total da operação de fornecimento de energia elétrica, mas sobre o preço praticado na operação final. Qual seria a operação final e qual seria o preço da operação final? A operação final é tão somente a entrega da mercadoria e o preço final é o custo da mercadoria entregue. Não compõem o preço final os valores das operações antecedentes de transmissão e distribuição. O preço final é o preço da energia elétrica (mercadoria) entregue ao consumidor final. Há a repercussão econômica destes custos na fatura final, mas não o repasse jurídico para fins de incidência do ICMS.

Note-se que a Lei n. 87/96 não disciplinou de modo diverso ou detalhado a matéria, impedindo o uso de analogia ampliativa.

  1. Da base de cálculo da ST com entrega de mercadoria e prestação de serviços

Se fosse possível a analogia, o que não é, poderíamos analisar casos em que há a entrega de mercadoria com a prestação de serviços, no caso de ST. Assim, digamos que se considere que no fornecimento de energia elétrica há entrega de energia elétrica e a transmissão e distribuição. Como se daria a composição da base de cálculo nesse caso? Vejamos a LC n. 87/96 que determina que:

Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

(…) VIII – do fornecimento de mercadoria com prestação de serviços:

Nesse caso, que não se aplica ao fornecimento de energia elétrica, mas que possui igualmente o fornecimento com prestação de serviços (transmissão e distribuição) a base de cálculo somente inclui o preço corrente da mercadoria:

Art. 8º A base de cálculo, para fins de substituição tributária, será:

(…) IV – no fornecimento de que trata o inciso VIII do art. 12;

     a) o valor da operação, na hipótese da alínea a;

     b) o preço corrente da mercadoria fornecida ou empregada, na hipótese da alínea b;

Nem esse argumento analógico seria possível ser utilizado. A concessionária de serviço público de fornecimento de energia elétrica é substituída tão somente do ICMS incidente sobre o valor da mercadoria fornecida ou empregada, excluindo-se literalmente outros valores na base de cálculo.

Por todos esses argumentos, cremos ser inviável afirmar-se que a tributação do ICMS abrange todo o processo de fornecimento de energia elétrica, considerando-se na base de cálculo a TUSD e a TUST.

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[3] http://www2.aneel.gov.br/arquivos/PDF/Por%20Dentro%20da%20Conta%20de%20Luz_pdf.pdf

Paulo Caliendo – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002), Doutorado Sandwich na Ludwig-Maximilians Universität em Munique (Alemanha) (2001). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Participou do Program of Instruction for Lawyers da Harward Law School (2001). Árbitro da lista brasileira do Sistema de Controvérsias do Mercosul. Atualmente, é professor permanente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autor da obra finalista do Prêmio Jabuti “Direito Tributário e Análise Econômica do Direito” e da obra “Direito Tributário: três modos de pensar a tributação”. Endereço para acessar este CV Lattes: . E-mail: p.caliendo@terra.com.br.